sábado, 23 de maio de 2009

Pipa, pião, bola, balão

Pipa, pião, bola, balão.

O doce caseiro da Dona Carmela,
Ficava esfriando, sempre na janela.
Muito ligeiro, e sem pedir pra ela,
Comia o doce, só deixava a panela.

A Dona Carmela saía apressada,
Mas na panela só tinha a raspa.
Então, da janela, zangada gritava:
Não rouba, pede moleque!

Como era bom sentir derreter,
Na boca contente, um doce algodão.
Sem preocupar, sem querer saber,
Da sua molécula ou composição.

Tento lembrar do meu algodão,
Lembrar do seu gosto, seu peso, seu preço.
Mas não há moeda, eu provo que não,
Que possa comprar o meu algodão.

Quando acabava o doce algodão,
Pegava o palito e riscava o chão.
Hoje o palito virou uma caneta
Que risca na folha saudoso refrão.

Rua

Com as mãos enfiadas no bolso,
Da jaqueta de lã marrom,
Atravesso o desespero e sinto a rua.
Paro no precipício da guia,
E me estilhaço em cada olhar.

Sou o bife de ouro do velho-homem-sanduíche,
Compro os caminhões de plástico dos meninos,
Transporto os desejos de cada garota,
Desejo o pão dormido de todo mendigo.

Quero beber o choro de toda namorada,
Abandonar o medo da poça dágua,
Urinar do sino de toda praça,
E ficar num banco, sonhando estrelas.

Anunciei o apocalipse - 9,90
Esmolei ouvidos e acordeons,
Rebolei a calça e o descontrole,
Esperei o sinal menstruar.

Com as mãos enfiadas no bolso,
Nesta fria ave-maria,
Senti-me mais humano,
Mais humano que um grito.

Mais humano que um tijolo,
Mais humano que um rio,
Mais humano que um espelho,
Mais humano que um estilhaço.

Uma canção sobre sair de casa

Eu piso torto.
E agora meu sapato gastou de um lado.
A noite, na estrada, chegando na cidade:
Um monte de luzes de caixa de supermercado
Pedem ajuda.

É a hora de sair de casa.
Sou uma espiral, mãe.
Uma casca de laranja
Que espirra veneno e poesia.

Seria bom se minhas memórias
Pudessem ficar no guarda-roupa.
Mas acho que tenho que levar tudo, não?
E levo até o guarda-chuva.

Vi um homem cantando uma canção,
Sobre sair de casa, mãe,
E ele dizia para você deixar seus medos.
Mas um dia desses passo aí, tiro minhas botas
E tomo um café com leite em sua cozinha.

E depois te espero em casa.
Quando você chegar abro um sorriso.
E tomamos um café que eu mesmo fiz.

domingo, 3 de maio de 2009

O tempo

O tempo
É estrada infinita.
A estrada não passa.
O viajante passa por ela.
Ela indiferente.
Ele a perquirí-la.


Percorre o poeta os vagões do trem-bala,
Percorre o poeta os vagões do trem-vida.
E não acha no trem redondilha pra bala,
E não acha na bala a rima pra vida.
Lançando-se então, o poeta sedento
Se joga na trilha do trilho do tempo.
E logo o trem-vida, que não tem guarida,
Encrava-lhe a bala, curando a ferida.

Blues do trem

Uma canção que fale de trem,
Que mostre a angústia,
E o bigodinho torto do cara ali.

Uma canção que fale de trem,
E sirva como inventário do Kaos,
E citação erudita prum imbecil.

Um canção que fale de trem,
Mas sem nenhum som de trem,
Sem repetir a palavra trem.

Uma canção que fale de trem,
Sem ser lugar-comum como aí acima,
Sem ser catastrófica como ali embaixo.

Uma canção que fale de trem,
Desses trens que correm nas linhas,
E levam as pessoas.

Édipo de havaianas

O homem deve matar seu pai e se tornar seu próprio pai.
Matar também a ideologia, o pensamento de sua classe,
Velharia que carrega o seu pai.

E o burguês culpado diz, vestindo bata e cajado, diz para seu pai:
"Papai, papai, abre mão de tua classe, abandona tua gente e me faz mais coerente".
E o burguês culpado diz: "Mamãe, me expulsa de teu útero, mas não sem
um último prato feito que tua empregada fez".

O jovem diz que diferente faz, e que não segue o esquema de seus pais,
Mas isso é só disfarce, eles são da mesma classe, e se duvidar o filho é até mais

Disso Belchior já sabia: "Vivemos como nossos pais".
Mas não me inclua nessa rua, eu saí de minha casa, eu matei meu próprio pai.

Ele não tinha nada não, nem tinha do que abrir mão.
Mas ele tinha ideologia e não era igual a minha, por isso me tornei meu próprio pai.

Cinderela (oficialmente se chama "No país das absurdidades")


Cinderela se casou com o lobo.

Rapunzel sujou os lábios de mel.

E os três porquinhos vão assar

No meu forno, neste Natal.


Gepeto fugiu com a bruxa.

E a fada está dançando can-can.

João e seu amigo gigante vão levar doces pra vovó.


Cinderela foi estuprada.

Rapunzel foi sequestrada.

Os três porquinhos queimaram um anão.

Gepeto suicidou-se.

E a fada foi demitida.

João P. F. se casou com Alice, que não tinha, ainda, entrado no espelho.